Tuesday, January 24, 2006

...

entrelinhas túrgidas
muitas reticências
e um medo danado de pensar alto demais
depois que a gente começa a descobrir liberdade, sai em busca de parâmetros...
credo... parece que não vou nunca parar de buscar algo...
eu procuro, procuro, procuro.... ai! chega!

Monday, January 16, 2006

"Acabou de sair" (Clarice Lispector)

Sua enorme inteligência compreensiva, aquele seu coração vazio de mim que precisa que eu seja admirável para poder me admirar. Minha grande altivez: prefiro ser achada na rua. Do que neste fictício palácio onde não me acharão porque - porque mando dizer que não estou, "ela acabou de sair".

Estou cansada

Muito do que tenho - começo a perceber - foi delicadamente comprado...
Nas sutilezas que a vida nos permite, sabe?
Cansei.
Não compro mais nada daqui pra frente.
Só o que for de verdade irá permanecer...
As coisas compradas são de mentira, e nos enganam com o nosso consentimento.
Na verdade, sabemos o tempo inteiro de todas as cores, motivos, caminhos e nuances de uma situação assim, mas sei lá que espécie de carência é essa que nos faz jogar a visão de lado e enganarmos a nós mesmos...
Mesmo as coisas compradas sendo de mentira, queremos nos convencer de que elas nos bastam... só que chega uma hora, quando estamos olhando a chuva, que percebemos que é preciso algo mais... que só o sincero e verdadeiro podem ser parceiros nessa vida.
Lembrei agora de um trecho de uma música da Madonna:
"The best things in life are always free..."

Beijos verdadeiros e grátis...

Monday, January 09, 2006

Um Amor Conquistado (Clarice Lispector)

Encontrei Ivan Lessa na fila de lotação do bairro e estávamos conversando quando Ivan se espantou e me disse: olhe que coisa esquisita. Olhei para trás e vi, da esquina para a gente, um homem vindo com o seu tranquilo cachorro puxado pela correia. Só que não era cachorro. A atitude toda era de cachorro, e a do homem era a de um homem com o seu cão. Este é que não era. Tinha focinho acompridado de quem pode beber em copo fundo, rabo longo e duro - poderia, é verdade, ser apenas uma variação individual da raça. Ivan levantou a hipótese de quati, mas achei o bicho muito cachorro demais para ser quati, ou seria o quati mais resignado e enganado que jamais vi. Enquanto isso, o homem calmamente vindo. Calmamente, não; havia uma tensão nele, era uma calma de quem aceitou luta: seu ar era de um natural desafiador. Não se tratava de um pitoresco; era por coragem que andava em público com o seu bicho. Ivan sugeriu a hipótese de outro animal de que na hora não se lembrou o nome. Mas nada me convencia. Só depois entendi que minha atrapalhação não era propriamente minha, vinha de que aquele bicho já não sabia mais quem ele era, e não podia portanto me transmitir uma imagem nítida.
Até que o homem passou perto. Sem u sorriso, costas duras, altivamente se expondo - não, nunca foi fácil passar diante da fila humana. Fingia prescindir de admiração ou piedade; mas cada um de nós reconhece o martírio de quem está protegendo um sonho.
- Que bicho é esse? perguntei-lhe, e intuitivamente meu tom foi suave para não feri-lo com uma curiosidade. Perguntei que bicho era aquele, mas na pergunta o tom talvez incluísse: "por que é que você faz isso? que carência é essa que faz você inventar um cachorro? e por que não um cachorro mesmo, então? pois se os cachorros existem! Ou você não teve outro modo de possuir a graça desse bicho senão com uma coleira? mas você esmaga uma rosa se apertá-la com força!" Sei que o tom é uma unidade indivisível por palavras, sei que estou esmagando uma rosa, mas estilhaçar o silêncio em palavras é um dos meus modos desajeitados de amar o silêncio, e é assim que muitas vezes tenho matado o que compreendo. ( Se bem que, glória a Deus, sei mais silêncio que palavras.)
O homem, sem parar, respondeu curto, embora sem aspereza. E era quati mesmo. Ficamos olhando. Nem Ivan nem eu sorrimos, ninguém na fila riu - esse era o tom, essa era a intuição. Ficamos olhando.
Era um quati que se pensava cachorro. Às vezes, com seus gestos de cachorro, retinha o passo para cheirar coisas, o que retesava a correia e retinha um pouco o dono, na usual sincronização de homem e cachorro. Fiquei olhando esse quati que não sabe quem é. Imagino: se o homem o leva para brincar na praça, tem uma hora que o quati se constrange todo: "mas, santo Deus, por que é que os cachorros me olham tanto?" Imagino também que, depois de um perfeito dia de cachorro, o quati se diga melancólico, olhando as estrelas: "que tenho afinal? que me falta? sou tão feliz como qualquer cachorro, por que então este vazio, esta nostalgia/ que ânsia é esta, como se eu só amasse o que não conheço?" E o homem, o único a poder delivrá-lo da pergunta, esse homem nunca lhe dirá para não perdê-lo para sempre.
Penso também na iminência de ódio que há no quati. Ele sente amor e gratidão pelo homem. Mas por dentro não há como a verdade deixar de existir: e o quati só não percebe que o odeia porque está vitalmente confuso.
Mas se ao quati fosse de súbito revelado o mistério de sua verdadeira natureza? Tremo ao pensar no fatal acaso que fizesse esse quati inesperadamente defrontar-se com outro quati, e nele reconhecer-se, ao pensar nesse instante em que ele ia sentir o mais feliz pudor que nos é dado: eu... nós... Bem sei, ele teria direito, quando soubesse, de massacrar o homem com o ódio pelo que de pior um ser pode fazer a outro ser - adulterar-lhe a essência a fim de usá-lo. Eu sou pelo bicho, tomo o partido das vítimas do amor ruim. Mas imploro ao quati que perdoe ao homem, e que o perdoe com muito amor. Antes de abandoná-lo, é claro.

Thursday, January 05, 2006

POR NÃO ESTAREM DISTRAÍDOS (Série Clarice Lispector)

Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que por admiração se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria e peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque - a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras - e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração. Como eles admiravam estarem juntos!
Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos.


Clarice Lispector é show!!


Beijos distraídos a todos...